Sunday, March 19, 2006

CARTA Número III


Meu caro cupim:
Alegra-me sobremodo o que você me diz a respeito das relações desse
homem com sua mãe. Mas você tem de tirar maior vantagem: pode ser que o
Inimigo esteja operando de dentro para fora, conduzindo o paciente
gradativamente à adoção dos padrões novos propostos à sua conduta de modo que
a qualquer momento possa fazê-lo submisso à antiga senhora. É preciso que você
seja o primeiro a entrar. Ponha-se em contato com nosso colega Absinto, que tem
aquela mãe a seu cargo, e vocês dois procurem arquitetar no íntimo do paciente,
um hábito eficiente e propício, de provocar mútuos aborrecimentos: chatices
diárias. Os métodos que passo a sugerir são muito úteis:
1. Mantenha a mente da vítima presa à vida interior dele mesmo, posto que sua
atenção se volta presentemente para aquela versão expurgada dos referidos
estágios de amadurecimento da alma, que é tudo quanto você lhe deve conceder
que contemple. Encoraje isto! Mantenha-lhe a mente abstraída relativamente aos
deveres mais elementares por insistir em que ela se dirija só para os deveres mais
avançados e mais espirituais. Faça mais grave essa característica humana que são o
horror e a negligência para com as coisas mais simples. Você poderá levá-lo a
condição na qual se torna possível o auto-exame durante uma hora sem que fiquem
descobertos fatos a respeito de si mesmo que seriam absolutamente claros aos que
tenham convivido com ele no mesmo escritório.
2. Sem dúvida é quase impossível impedir-lhe que interceda por sua mãe, mas
temos meios para fazer com que tal intercessão fique nula. Certifique-se de que as
orações sejam sempre muito espirituais, de modo que o paciente se preocupe
incessantemente com o estado da alma de sua mãe e não com seus reumatismos.
Duas são as vantagens que daí provêm. Em primeiro lugar, a atenção do paciente
ficará presa naquilo que ele mesmo considera como sendo pecados dela, por cujas
expressões, com alguma diligência que você exerça, ele poderá ser induzido a
definir esses pecados maternos como ações dela que lhe pareçam irritantes ou
inconvenientes. Assim você poderá manter arranhantes todos os problemas mais
diários, mesmo quando ele estiver prostrado de joelhos. A operação não é das mais
complicadas e você irá achá-la bastante recreativa. Em segundo lugar, desde que
suas idéias acerca da alma da mãe são muito cruas e freqüentemente erradas, ele
estará de uma certa forma, orando por uma pessoa imaginária, e sua tarefa é fazer
com que a pessoa imaginária se distancie mais e mais da mãe real - a velha senhora
de língua afiada no café da manhã. Com o passar do tempo, você poderá alargar
esta distância a tal ponto que nenhum pensamento ou sentimento vindo de suas
orações possa fluir para a personagem real. Já tive pacientes tão bem manipulados
que poderiam mudar num instante de uma apaixonada oração pelas almas de sua
esposa ou filhos para o espancamento e insulto dos familiares reais sem
constrangimento algum.
3. Quando dois seres humanos viveram juntos por muito tempo, usualmente
aparecem tons de voz e expressões faciais de um que quase enlouquecem de fúria
ao outro. Trabalhe em cima disso! Traga à lembrança de seu paciente aquele
especial arquear de sobrancelhas que ele aprendeu a detestar desde a infância, e
convença-o de quanto ele detesta este trejeito. Faça com que ele assuma que ela
sabe perfeitamente o quão irritante é esta mania e por isso mesmo faz a tal careta
de propósito só para atormentá-lo - se você souber trabalhar, ele nunca
desconfiará da imensa improbabilidade de tal presunção. E é claro, nunca o deixe
perceber que alguns tons de voz e expressões faciais dele a aborreçam da mesma
forma. Já que ele não pode se ver ou ouvir pela ótica dela, isto é de fácil
execução.
4. Na vida doméstica civilizada, aparecem expressões que aparentariam total
inocência se escritas no papel (ou seja, as palavras em si não são ofensivas), mas
ditas com certo tom de voz, ou num dado momento ou com certo sorriso,
assemelham-se a autênticas bofetadas na cara. Visando manter este jogo bem
aceso, você e o Absinto devem estudar todos os detalhes a fim de manter esta
dupla de idiotas com também duplo padrão de personalidade e comportamento.
Seu paciente deverá cobrar que tudo que ele disser seja tomado ao pé da letra e
julgado simplesmente pelo teor das palavras, ao mesmo tempo em que ele faz
exatamente o oposto com tudo que a coroa disser, julgando cada tom, gesto,
expressão facial como formas veladas de agressão. Ao mesmo tempo, Absinto
deverá encorajá-la à mesma atitude. Assim, depois de cada briga, cada um deles
poderá sair convencido (ou quase convencido) de que estava totalmente inocente.
Você sabe aquele tipo de papo: Eu só pergunto a que horas irá sair o jantar e ela
fica toda nervosinha! Desde que este hábito tenha sido bem estabelecido, você
terá a divertidíssima situação em que um humano diz coisas que visem ofender ao
seu próximo e depois se mostrem indignados quando o próximo se manifesta de
fato ofendido. Finalmente, conte-me algo sobre a posição espiritual da velhota. Ela
está ciumenta devido ao novo fator na vida do filho? Estará desgostosa de que ele
haja aprendido de terceiros - e tão tardiamente - o que ela supõe ter dado a ele
desde a mais tenra infância? Ela considera que ele estaria fazendo demasiado
alarde em torno do caso? Ou que ele aceitou de estranhos com a maior facilidade o
que ela nunca conseguiu inculcar-lhe? Lembre-se do irmão mais velho na Parábola
do Inimigo...
Afetuosamente, seu tio
Morcegão

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